segunda-feira, 20 de novembro de 2017

O Estranho que Nós Amamos (2017)




            



           Há mais ou menos um mês pude conferir este novo filme de Sofia Coppola, “The Beguiled”, refilmagem do célebre filme de Don Siegel. Por um motivo ou por outro, adiei a confecção de um texto sobre o filme, mas agora o faço, não porque o filme, em si, tenha alguma importância (se temos sempre que escolher, entre tantos filmes, sobre os quais escreveremos, certamente este novo Beguiled não seria, por suas qualidades, das primeiras opções), mas porque, de algum modo, me surpreendeu.

            Me lembro que, à época do anúncio de que Coppola faria uma versão deste clássico, houve muitas vozes para dizer que aquilo seria uma espécie de sacrilégio, um filme abominável e um tanto iconoclasta, que tentaria substituir Clint Eastwood por algum fanfarrão hollywoodiano qualquer e o gênio de Siegel pela inépcia da diretora escolhida para a produção, que já nos últimos anos estava evidente. Ou seja: esperava-se uma espécie de aberração.

            E a surpresa veio no seguinte: se o filme está incomensuravelmente distante da sua versão da década de 1970, não se pode dizer, de fato, que seja uma abominação. É, antes, um filme completamente estéril, completamente desprovido de qualquer relevância, a verdadeira expressão em filme daquilo que nós costumamos dizer ser “uma obra passável”. E isto tanto num campo que tange mais às ideias quanto num outro, que tange mais às formas.

            Se a ideia de refilmar o clássico de Siegel pelas mãos de Coppola parecia a ideia de um projeto inútil (não tanto propriamente pela sugestão de uma revisita àquela obra, visto que já houve refilmagens de “clássicos absolutos” muito bem sucedidas – Losey para o “M” de Lang, por exemplo –, mas por esta revisita, justamente, ser perpetrada por uma diretora inapta), ela é bastante pouco perto da inutilidade real do filme: a tabula rasa que é o novo “The Beguiled” é “rasa” porque se configura como um produto de certa estética que, paulatina e perniciosamente, veio permeando o cinema de Coppola e que, agora, chega no ápice de sua expressão.

            Acontece que, pelo menos desde de “Somewhere” (talvez desde “Maria Antonieta”, mas este é um filme que não revejo há muitos anos), há uma postura em Coppola, enquanto artista, que promove certa apatia constante em suas obras. No próprio “Somewhere” esta postura e seus mecanismos ficam um pouco evidentes: o plano inicial é uma espécie de looping de manobras de um carro, que gira e gira, sempre num mesmo traçado, sem saber aonde ir e terminando sempre no mesmo ponto. É o plano de apresentação do protagonista, que metaforiza a sua própria condição diante do mundo: um ator em crise existencial que, em certo momento, vê seus rumos mudados pelo convívio com sua filha de 11 anos. Desde aí havia uma determinada preferência de Coppola por temas como a indiferença em relação ao mundo ou a ausência de compreensão do sentido da existência. Se isto permanecesse no campo das predileções de seus personagens (certas vezes, mesmo que não necessariamente, até revertidas por críticas que se verificassem ao longo das obras ou por quaisquer mudanças nas próprias perspectivas de mundo destes personagens) não haveria problemas, em si. O curioso é que isto parece redundar na própria visão de Coppola sobre suas obras, sua visão sobre o “mundo particular” que é o mundo de seus filmes: há, desde “Somewhere”, a insistência por uma distância entre a diretora e seus personagens, com suas vivências e posturas diante do mundo; uma certa de preferência por um posicionamento neutro e desprovido de julgamento, não num sentido mulliganiano de compreensão das limitações humanas, mas numa espécie de agnosticismo moral, que parece ver-se incapacitado naturalmente ao juízo ou que pelo menos não se importa em exercê-lo. Para fora do que concerne a este ato de julgar, este agnosticismo é também uma forma de negar-se propriamente a discernir as próprias motivações das ações de seus personagens, ou seja, em última instância se configura num isolamento total, onde simplesmente se relata uma série de atos humanos sem lhes inferir propriamente um juízo de valor nem lhes discernir as causas.

A partir daí, Coppola parece se fiar, em suas obras, numa estética que torna seus filmes uma mera apresentação de mundos exóticos e de ar certamente mistérico, que veem no espectador uma espécie de voyeur. Aqui, parece haver a aposta no único elemento que, proveniente deste seu mecanismo, poderia favorecer suas obras: o mistério que está por trás dos atos humanos retratados em seus filmes. Se a diretora não julga tais atos, ou pelo menos se esforça ao máximo para fugir a este julgamento, se também não discerne as causas de tais atos, resta a ela nos apresentar mundos com uma aura do desconhecido, com certa dúvida sobre tudo aquilo que acontece, sobre por que acontece, sobre a bondade ou a maldade do que acontece. E é aqui, precisamente, que encontramos o cerne do problema no cinema recente de Coppola: todo este mundo de exotismo nos é vendido (vendido ao nosso voyeurismo de espectadores) não como um conjunto de experiências e atos humanos dúbios e intrigantes por sua dubiedade, ou mesmo como um conjunto de vivências interessantes (mesmo que sem tanta dubiedade) por alguma causa recôndita, mas como uma espécie de “peça de grife” ou de “anão de circo”. Se trata, assim, da formação de um voyeurismo no qual o interesse do voyeur pelos atos humanos inexplicáveis em suas causas (e, portanto e principalmente, em suas finalidades), está, simplesmente, nesta própria inexplicabilidade. Em palavras mais concisas: o interesse do voyeur construído por Coppola é unicamente na futilidade de atos fúteis. E de atos para os quais a diretora e seu mecanismo agnóstico conferem cada vez mais futilidade.

            É interessante o exemplo de “The Bling Ring”, por ser o mais evidente de todos neste sentido: as atitudes e o espírito daquelas patricinhas parecem redundar nas formas que o objeto estético em que o filme se configura adquire: a fotografia de anúncios de perfume, que parece construir um mundo rosáceo (uma espécie de shopping center rosa schocking), os inúmeros planos de objetos de grife e da retratação de um mundo de aparências nas redes sociais computadorizadas que bombardeiam o espectador, tudo isto nos é vendido como objeto de interesse. E mesmo que Coppola venha a dar um “fim justo” aos seus ladrõezinhos no fim do filme, isto não impede que toda a obra continue sendo uma abominação da promoção desta perspectiva voyeurística em relação às atitudes humanas ali retratadas. Em Coppola, é como se estivéssemos numa espécie de reality show, onde o principal trunfo é atrair-se o espectador pelo interesse nas inutilidades da vida alheia.

            Com isto, é possível que se diga que o cinema de Coppola, se redundou formalmente nos espíritos fúteis de seus personagens, também tornou-se um cinema de filmes fúteis, algumas vezes desprezíveis esteticamente e mesmo moralmente.

            A primeira surpresa, nisto tudo, é ver que seu “cinema de inutilidades”, com o novo Beguiled, não se torna propriamente uma aberração mais chocante que a de seu filme anterior, mas um objeto ainda mais passável, mais estéril, que não suscita quaisquer desejos de reação, de indignação ou de louvor. É o cinema de um filme-nada.

            É interessante perceber a tentativa da diretora em tornar “O Estranho que Nós Amamos” um filme permeado por tensões, a partir deste ar “mistérico do mundo” sobre o qual já falamos: há vários momentos que, em elipse, produzem vácuos nas ações, a fim de lhes dar um ar de desconhecido; há também certa implantação, teoricamente intrigante, de dada naturalidade em ações teoricamente mais excepcionais (a sequência que nos apresenta o ato sexual entre a jovem sedutora e o “estranho que todas amavam”, por exemplo). A própria apresentação de cada personagem e de seus interesses pessoais dentro do filme é posta de uma certa maneira como que isolacionista, em que não há propriamente uma evidente concatenação narrativa que leve, pouco a pouco, à descoberta, pelo protagonista, dos espíritos de cada uma daquelas mulheres. Seria como se, de modo abrupto e deslocado, sem uma causa evidente, todas se apresentassem: “olhe, eu sou assim”.

            Curiosamente, todos estes mecanismos são, evidentemente, motivo de grande fracasso para o filme, que se torna um grande amontoado de ações sucessivas desprovidas da fortificação de um aporte narrativo que as pudesse emoldurar para que se potencializassem e adquirissem significado maior e peso estético mais relevante. Mais uma vez, como em seu filme anterior, alguém poderá dizer que aqui há um fechamento que impede que a obra se torne um mero objeto cuja apreciação consiste num voyeurismo afeito às atitudes fúteis: no fim de “The Beguiled”, e ao longo de sua extensão, ficam evidentes certas causas de alguns atos perpetrados por aquelas mulheres (o espírito de rancor e de inveja é bem nítido, por exemplo). Mas nenhuma afirmação neste sentido faria com que a estética pretensamente mistérica de Coppola pudesse se tornar coadjuvante, até por ser esta estética quem, por excelência, é responsável pela regência formal de sua obra. Os mecanismos já aqui apresentados são suficientes para se discernir a esterilidade e o aspecto propositalmente deslocado das ações de seus personagens.

            Disse eu, há alguns parágrafos atrás, que o fato de “O Estranho que Nós Amamos” ser um “filme-nada” era uma primeira surpresa sobre ele. Mas ainda há uma segunda, que trata do que isto representa no panorama geral da obra de sua diretora.

            É muito curioso que uma cineasta que tenha iniciado sua carreira com “As Virgens Suicidas” e “Encontros e Desencontros” tenha se tornado justamente a cineasta das ações estéreis. Justamente porque esses seus grandes filmes de estreia, mesmo que pudessem em alguma instância estar permeados pelo espírito do que seria a Coppola posterior, eram filmes que justamente conservavam pequenos atos profundamente significativos, de um peso imenso, que imprimiam uma espécie de marca indelével no coração dos espectadores. O abraço final em “Lost in Translation” e o derradeiro gesto de caridade e sedução de Kristen Dunst, quando pousa sua mão sobre o cinto do menino mais novo antes da morte coletiva das virgens suicidas, são, provavelmente, os dois gestos mais sintéticos, os arcabouços gestuais mais significativos de sentimentos não mensuráveis que o cinema viu nos últimos 20 anos. É surpresa para nós, enfim, que estes momentos de suprema beleza tenham sido substituídos, na Coppola de hoje, por ações que provocam repulsa ou (e principalmente) indiferença. E a impressão que nos fica é a de que a cineasta perdeu, talvez definitivamente, uma capacidade sublime que deve estar contida em todos os artistas: a capacidade de discernir a beleza das “coisas simples da vida”.       

            

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