quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Sobre o Virtuosismo da Ação - Lau Kar-Leung e Jackie Chan




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                Na minha última postagem, falava eu sobre o que considero ser as linhas estruturais que nortearam as tendências do cinema de ação em Hong Kong. As duas escolas centrais, uma mais literária e prosaica, outra mais operística e poética, geravam certas linhas colaterais que, de modo indireto, acabaram formando uma espécie de terceira escola, com influência de ambas as outras duas e capitaneada por antigos diretores de ação dos estúdios Shaw.

            Esta postagem de agora é uma espécie de destrinchamento da análise dessas linhas colaterais, mas mais propriamente se trata do discernimento de onde a obra de Lau Kar-Leung influenciou uma das figuras mais conhecidas do cinema de kung fu, Jackie Chan, ou seja, se trata de verificar os pontos de contato entre as obras de ambos e estabelecer em que instância estabelecem certo parentesco.


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            Poucos percebem, mas é muito provável que, entre os filhos dos Shaw Brothers, Lau Kar-Leung seja o diretor cuja obra mais ficou impressa na cultura popular: dois dos clássicos do kung fu mais assistidos e lembrados são dele, Eight Diagram Pole Fighter e A 36ª Câmara de Shaolin, e o próprio Kill Bill, tão famoso por ser derivado em certos pontos do legado da SB, é muito mais fruto de uma derivação dos grandes clássicos deste diretor do que da herança da produtora em geral.

            Desde já, isso já seria um motivo de encontro com a mesma medida (até aumentada) de sucesso do seu pupilo, Chan. Mas aí se trataria de estabelecermos aqui todas as causas, inclusive históricas, muito difíceis de delimitar hoje, do sucesso de ambos, o que se tornaria um exercício improdutivo e impreciso. O que importa é, com essa afirmação inicial e de algum modo, perceber-se que há, pelo menos, um elemento estético bem verificável tanto em um quanto em outro que, muito provavelmente, serviu de estímulo para a grande difusão de ambas as obras. E este elemento é o que eu preferirei chamar aqui de “virtuosismo da ação”.

            Não é segredo para ninguém que Lau Kar-Leung foi, antes de cineasta propriamente, diretor de ação, principalmente nos dramas de amizade masculina e ode à cavalaria de Chang Cheh. Sobre as influências que este período gerou na sua obra posterior, já escrevi anteriormente. Então prefiro me ater agora àquilo que o ofício de diretor de ação produziu enquanto legado para esta obra que viria pela frente.

            A primeira - e mais óbvia das heranças - é o fato de que se no cinema de Cheh, por exemplo, a ação dos atores, os seus atos de combate são espécies de encarnações das suas necessidades vitais e das suas tragédias pessoais, assim como instrumentos para levar a cabo as intenções que permeiam todo este ambiente trágico e existencial, no caso de Kar-Leung o kung fu é, ele mesmo, um próprio “estilo de vida”, ou, mais propriamente, uma porta para uma nova vida, para uma nova forma de ver o mundo. Em ambos os casos, as artes marciais são um instrumento, mas exercem funções muito diversas: se no primeiro o kung fu é a via para a realização dos objetivos dos protagonistas e, muitas vezes, uma espécie de veículo para fazer com que as tragédias ou as vinganças se perpetuem, no segundo são os próprios objetivos dos protagonistas que se tornam uma espécie de instrumento primeiro para que se chegue no kung fu, ou seja, o intuito da realização de uma tarefa (uma vingança, por exemplo), em Kar-Leung, é um meio que faz com que o realizador desta tarefa aprenda as artes marciais para realizá-la. E é neste ponto que a moral da história fica evidente: agora aprendido o kung fu, ele passa a mudar a vida do seu praticante, lhe dá coragem, nova força, se torna o segundo instrumento que leva ao objetivo final da realização existencial do guerreiro.

            É muito interessante, inclusive, perceber com que mecanismos tudo isto funciona. A estrutura pode variar de caso para caso, mas geralmente se encontra assim na relação entre os protagonistas dos filmes: há o esquema de mestre e discípulo; este último recebe, sem entender muito bem, ordens das mais variadas do seu tutor, geralmente absurdas, afazeres diversos e meio domésticos que parecem mais uma espécie de escravidão do que de aprendizado do kung fu; em algum momento, o discípulo vai percebendo como estas ações simplórias do dia-a-dia, estas ações humanas corriqueiras têm a ver com as ações das artes marciais e podem contribuir muito para o tal aprendizado. Ou seja, basicamente, para Kar-Leung, conhecendo a física das coisas, acaba-se por conhecer o kung fu. E, naturalmente, o kung fu, em contrapartida, passa a nos ajudar também a ver as coisas por um melhor ângulo.

            É curioso que, neste sentido, se possa fazer outro contraponto com Chang Cheh: como em seu cinema a ação é mero instrumento de cumprimento da sina de cada personagem, o seu aprendizado ou a sua prática não são redentoras, somente o seu efeito (a morte de alguém, por exemplo) e, mesmo assim, nem sempre. E isto é uma cabal exemplificação para entender-se o cerne da sua obra, que, se por isso não se torna propriamente pessimista, se torna profundamente trágica (onde a ação serve como instrumento do cumprimento do fado) e heroica (onde a ação serve como instrumento para uma finalidade honrada). Já em Lau Kar-Leung, a própria ação (e não a sua finalidade) é, propriamente, redentora, porque, se somos praticantes dela, é porque entendemos melhor a mecânica do mundo e, se entendemos melhor o mundo, entendemos melhor, também, nossa função nele, ou seja, nossa existência.

            A partir disso tudo é plenamente possível que se perceba aí um cinema que evoca (até pela própria formação de seu autor) a arte marcial como parte integrante e inseparável da vida de alguns homens (seus personagens) que souberam ver a existência de um modo peculiar e virtuoso. Assim, neste universo, o homem que aprende o kung fu não mais o separa da sua vida ou o instrumentaliza meramente, mas o vive, como se vivesse numa espécie de “espírito do kung fu”.

            Essa unidade inseparável entre vida e arte marcial e, mais propriamente, de ações quotidianas e ações de combate é que caracterizarão a segunda herança, já menos óbvia, do ofício de diretor de ação para a obra posterior de Kar-Leung: há nela uma espécie de virtuosismo da ação, passível de verificação em quase todas as suas obras onde estes valores aqui citados são mais evidentes. Para o cineasta, a facilidade no manejo das ações de combate é diversas vezes comparável com aquela com que os mesmos combatentes realizam as suas ações quotidianas. Ou seja, para o herói de Lau Kar-Leung, lutar é como lavar pratos ou encerar a casa, até porque ele já percebeu que lavando pratos ou encerando a casa pode muito bem aprender sobre o kung fu, de modo que, para ele, o combate é perpetrado sempre com muita habilidade e destreza, mas, acima de tudo, sempre com muita tranquilidade, com um certo charme de quem “não está nem ligando” para o que seu oponente tem a oferecer. É isto que aqui chamo de virtuosismo. Não se trata de pensar nos atores das ações como arrogantes que não se comovem ou não têm nenhum medo absolutamente, mas de perceber que tratam a ação de combate com uma naturalidade ímpar, tornando-se, assim, virtuoses.  

            Muitas vezes este charme do virtuosismo é tido, neste âmbito, como uma espécie de ato de ministrar joguetes ou de, em algum momento, caçoar do adversário, que muitas vezes se atrapalha ao não conseguir adivinhar os próximos passos tão naturalmente perpetrados pelos heróis/protagonistas, o que se deve principalmente ao fato de que o virtuose, ao ser um exímio praticante da sua ação virtuosística, é também um improvisador: sempre pode criar, no caso do kung fu, um golpe inusitado ou novo ou, ainda, confundir os desavisados com uma série de ações bem encadeadas e pouco previsíveis.

            São estes joguetes e estes atos de caçoar típicos dos virtuoses de Kar-Leung que conferem ao seu cinema um outro elemento: uma espécie de tom cômico extremamente cativante para com os espectadores, que parecem sempre alegres e entusiasmados, não só pelo espetáculo da ação bem concebida (e bem filmada), mas também pela própria discrepância entre estas espetaculares artimanhas e aquelas que são perpetradas pelos inimigos daqueles que as põem em prática. Assim, o cinema de Lau Kar-Leung é um cinema de ação por excelência, onde a ação é centralíssima (não só como evento estético cuja apreciação é o ponto principal das obras, mas como modo de realização existencial), mas que também, por esta própria centralidade da ação, acaba se enveredando pela comédia. Ou seja: é cinema em que o próprio virtuosismo na ação se torna um fato cômico em sua própria excelência virtuosística.

            É natural que este elemento estético se tornasse, até mesmo pelo caráter mais vendável de um cinema de kung fu mais virtuosístico (já estabelecido internacionalmente em Bruce Lee), fator chave para a maior popularidade mundial e a maior perpetuação enquanto herança do cinema de Kar-Leung em detrimento dos demais cinemas contidos na Shaw Brothers. E é este um mesmo motivo central para a popularidade de Jackie Chan.

            É notório que Chan tenha trabalhado com Kar-Leung em sua juventude, inclusive tendo os dois contracenado juntos num filme dirigido pelo segundo. O filme é o já clássico Drunken Master, onde Jackie Chan se vê confrontado com o aprendizado mais que heterodoxo de uma espécie de kung fu que alcançava seu maior potencial quando o praticante estivesse bêbado. Era, claro, mais uma faceta dos virtuosismos de Kar-Leung e os resultados, por mais contestáveis que fossem em alguns aspectos da obra, alcançaram o sempre desejado nos demais casos: séries de cenas cômicas em que o cambalear do ébrio serve mais para ajuda-lo do que para atrapalhá-lo ao estapear os mais diversos bandidos. No fim do filme, naturalmente, Chan acaba por levar uma vida mais regrada e acaba fazendo as pazes com seu pai, com quem havia brigado, mas é claro que tudo isto só é possibilitado pela experiência vital contida no seu aprendizado singular do kung fu.

            É possível que digamos, à luz do próprio Drunken Master, que Chan aprendeu bastante a lição do velho mestre Lau, não só por meio de seu personagem no filme em questão, mas no seu próprio ofício de cineasta: não é marca registrada de seu cinema este tal virtuosismo do qual tanto falamos? E também, por este mesmo virtuosismo, não é marca do seu cinema o caráter cômico? É claro que é possível que falemos de um Chan de influência dupla, como eu mesmo falei em minha última postagem: Sammo Hung também foi seu professor no ofício da comédia, mas o caráter cômico do virtuose, este só existe estruturado tal e qual discernimos aqui em Lau Kar-Leung.

            Seria possível também objetar, para derrubar toda a argumentação aqui proposta e não só a do parentesco entre Lau e Jackie, que o próprio Kar-Leung não baseia inteiramente seu cinema neste virtuosismo cômico (onde estaria isto em Eight Diagram Pole Fighter?), mas isto seria bastante incorreto, primeiro porque tratamos aqui de um elemento central que o seu cinema evoca, mesmo que não direta ou inteiramente em todos os filmes. O certo é que, enquanto diretor de ação tornado cineasta, Lau Kar-Leung pôs o kung fu em tal situação de protagonismo em sua obra que já não era um mero títere secundário, mas fator central, elemento da análise mesma dos filmes enquanto obras de arte que se debruçam diante de determinada realidade. A partir daí, todo o resto, inclusive sobre o que digressionamos aqui, é consequência, mas consequência que nunca deixa de permear direta ou indiretamente todo o espírito de sua obra singular. Porque se todo artista acaba, enquanto autor de suas obras, por imprimir seu olhar sobre o mundo no cerne de todas elas e de suas respectivas estéticas, o olhar de Kar-Leung é, antes de tudo, o olhar do artista marcial, de uma espécie de “físico involuntário”, que aprendeu a ver o mundo por este olhar e que aprendeu, com o mesmo olhar, a viver melhor no mundo. Isto é, sem dúvidas, uma verdade incontornável.