segunda-feira, 27 de março de 2017

Golden Swallow, por Samuel Douhaire



Cheng Pei-pei, Cheh Chang e Jimmy Wang Yu



Golden Swallow




CinéCinéma Auteur, 21 horas

por Samuel DOUHAIRE


Em 1966, King Hu deu uma guinada artística nos filmes de capa e espada chineses com “O Grande Mestre Beberrão”. Suas contribuições? Uma reconstrução histórica fiel que não excluísse o humor, uma mise en scène elegante e sequências de combate influenciadas pelo faroeste-espaguete, muito em voga, na época, em Hong Kong. Isso tudo para não mencionar o destaque de uma heroína guerreira, mesmo que a bela Cheng Pei-pei tenha passado boa parte do filme disfarçada de homem, por causa das relutâncias do produtor Run Run Shaw, que acreditava que as mulheres deviam se limitar aos papéis românticos. O triunfo em toda a Ásia pedia uma continuação. Mas, à essa altura, King Hu já havia partido zangado para Taiwan e a Shaw Brothers teve de recorrer ao seu segundo realizador mais célebre, Cheh Chang, que se apressou em realocar o filme em seu universo próprio, muito mais trágico, mais sangrento e, acima de tudo, muito mais viril.

Contrariamente àquilo que o título nos faz crer, a “Andorinha de Ouro” não é mais o personagem central. Este não é senão a “Fênix de Prata”, um jovem cavaleiro invencível, antigo colega da Andorinha de Ouro, pela qual é perdidamente apaixonado. Para revê-la, ele se transforma num anjo exterminador, gerando vários grandes feitos e várias mortes, fazendo-se passar pela Adorinha. Nesse contexto, a estrela Cheng Pei-pei vira um mero artigo de luxo nas mãos do belo Jimmy Wang Yu. As sequências de combate, sem negar a influência de Sergio Leone (a mise en place quase ritual antes da explosão brutal de violência), remetem de mesmo modo ao chanbara japonês (filme de sabre) sem se preocupar com o realismo. Jimmy Wang Yu sai vencedor de confrontos de um contra vinte, aniquilando quatro com um só golpe de espada, sem o menor arranhão, nem a menor gota de sangue sobre sua roupa. Como se Cheh Chang, como mestre das cores, tivesse escolhido esperar o último momento para manchar de vermelho a bela túnica branca de seu ator...




Tradução: Yuri Ramos
Publicado originalmente em: http://www.liberation.fr/medias/2006/04/14/le-retour-de-l-hirondelle-d-or_36284




sexta-feira, 17 de março de 2017

Relembrando Cheh Chang, por John Woo





Um obituário



O texto que segue é um dos dois prefácios (o outro é de autoria do crítico chinês Sek Kei) de um livro intitulado Chang Cheh: A Memoir, um título que, à época (2002/2003), deveria ter um sentido um tanto duplo: se, por um lado, o livro conta com registros de memórias biográficas de Chang, acabou, por outro, sendo um memorial em honra ao falecimento do diretor, que havia ocorrido pouco antes de seu lançamento.

O prefácio é de autoria de John Woo, ex-assistente de direção de Chang. E, dadas as circunstâncias do momento e a proximidade de Woo com o falecido/homenageado, nada é mais justo do que lê-lo, antes de tudo, como um obituário.

O texto está originalmente publicado no livro em questão e, disponível a todos, em inglês e chinês no site do Hong Kong Film Archive.


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Relembrando Cheh Chang, por John Woo



Cheh Chang nasceu em Zhejiang e isso sempre nos divertia, porque ele falava cantonês. A equipe, o elenco e os dublês riam tanto que chegavam a chorar. Por exemplo: nós ouvíamos tau sik (escondendo um pedaço de comida), quando na verdade ele queria dizer tau jaap (ataque surpresa). E essa é só uma das muitas coisas que descobrimos sobre ele. Cheh Chang não se ofendia nem um pouco com isso e ria conosco. Era como um ancião que sorria indulgentemente diante de crianças malcriadas que lhe arranjavam problemas. Apesar disso, sempre que ele nos dizia como um plano deveria ser filmado, prestávamos muita atenção, dando o máximo de nós mesmos para realizarmos, da melhor forma possível, os nossos deveres, porque o diretor Cheh Chang tinha de nós o máximo respeito. Cada plano que ele idealizava era, para nós, um desafio, um processo de aprendizado e qualquer contribuição num filme de Cheh Chang, por menor que fosse, era, para nós, um grande orgulho. E se alguém fazia algo errado, ele não lhe dava punições, mas conselhos e incentivos. Ele sempre via nas pessoas as suas qualidades e não seus erros. A indústria cinematográfica é um mundo competitivo, onde não nos sentimos seguros. Há pressões que surgem por todo lado e o medo de errar nos põe sempre para baixo. E, mesmo assim, Cheh Chang nos fez sentir que fazer filmes poderia ser algo divertido, espirituoso, às vezes poético; algo dignificante. Nós sentíamos que o estúdio era nossa casa.

Embora tivesse se envolvido, durante um breve período da sua juventude, na política, Cheh Chang jamais carregou isso para seus filmes ou para sua vida pessoal. Havia nele o
romantismo de um artista e a integridade de um intelectual, ao mesmo tempo em que, na sua personalidade, havia valores muito bem definidos. Modesto, tolerante e de mente aberta, ele não tinha a agressividade e a manipulação que constituem um político. Cheh Chang era um homem de poucas palavras e um homem de palavra, que demonstrou sua eloquência em seus filmes e escritos. A fluidez estrutural de suas imagens no cinema e daquilo que escreveu, além de cativante, exibe seu verdadeiro jeito de ser. Seus filmes, caracterizados pela busca de ideais elevados, jamais alcançados à custa de emoções corriqueiras, exaltaram as artes marciais, assim como o espírito de nobreza. Grandioso no estilo e magnífico na apresentação, seus filmes levam o público a uma catarse extasiante.

Cheh Chang podia não ter a língua afiada dos políticos, mas certamente um olho afiado para os talentos, sempre conservando um grande coração e os braços abertos para com eles. Seus colaboradores de longa data, incluindo renomados roteiristas como Ni Kuang e Chiu Kang-chien, diretores de artes marciais como Tong Kai e Lau Kar-leung, o diretor de fotografia Miyaki Yukio (mais conhecido como Gong Muduo) e todo o resto de sua equipe eram a elite da indústria cinematográfica. Todos eles tiveram um papel importante para o sucesso dos filmes de Cheh Chang. A partir dos seus trabalhos, nós, que aprendíamos o ofício da direção com Chang, pudemos também perceber a importância dos roteiristas e por que um roteiro é a alma de um filme. Numa mistura entre o espírito, a beleza e a habilidade do wuxia, Tong Kai e Lau Kar-leung reinventaram a coreografia de artes marciais, dando perfeita expressão às inclinações românticas de Chang.

Cheh Chang tinha o toque de Midas em suas mãos quando descobria um novo astro. Ele tinha ótimos olhos para reconhecer o potencial de um ator e seu faro nunca falhava. Ele descobriu e ajudou no crescimento de uma verdadeira galáxia de estrelas e muitas delas se tornaram ídolos do cinema. Ele as conduzia e as fazia crescer de modo sábio, entusiasmado, nutrindo por elas uma admiração mútua. Baseado no potencial, no temperamento e no apelo pessoal de cada ator, ele confeccionava cada personagem com uma personalidade única. Jimmy Wang Yu, Lo Lieh, John (David) Chiang, Ti Lung, Wang Chung, Chan Koon-tai, Alexander Fu Sheng, Danny Lee, Kuo Chui e tantos outros se mostraram como estrelas carismáticas e com um estilo único. Cheh Cheng não foi só um “fazedor de estrelas”: ele podia extrair o melhor de cada ator. Eles viam nele um tutor.

Nos primórdios, ter mais idade contava muito na indústria cinematográfica e, por isso, os jovens costumavam ser um pouco desprezados. Cheh Chang, ao contrário, dava aos novatos uma chance. A juventude lhe despertava muita admiração: ele podia sentir sua vibração e sua criatividade. Os heróis de seus filmes são, invariavelmente, homens jovens com um ar romântico que demonstram a graça dos cavaleiros errantes, sempre colocando a retidão e o cavalheirismo à frente de tudo e buscando confiança ao encarar os desafios. Antes de trabalhar para Chang, eu era um jovem tímido e reservado. Sem muita autoconfiança, não dava muita voz às minhas próprias ideias e opiniões. Depois de ver uma série de seus filmes, como One-armed Swordsman (1967), The Golden Swallow (1968), The Wandering Swordsman (1970) e Vengeance! (1970), criei dentro de mim o sentimento de que podia possuir o mesmo tipo de romantismo juvenil que estava contido nos heróis destes filmes. Quando eu me sentia perdido, duvidoso das minhas habilidades e do meu futuro, Chang me encorajava a focar no ofício de diretor, o que, à época, era um sonho impossível para um iniciante. Nós nunca nos falamos muito, mas, sabendo do meu potencial, ele me deu direcionamentos e me ajudou a elevar minha autoconfiança e minha autoestima. Olhando para trás, Cheh Chang não influenciou só a minha maneira de dirigir, mas também o meu próprio modo de viver. E a isto eu sou eternamente grato.

Os filmes de Cheh Chang são jovens no espírito. Ele acreditava em si mesmo e persistia em seus sonhos e sua mente criativa, apesar da idade, jamais envelheceu. Seu pensamento era extremamente lúcido e ele nunca deixou de escrever ou de ajudar os recém-chegados na área do cinema. Na verdade, ele nunca deixou de se preocupar com aqueles atores e técnicos que viu crescer e amou como seus próprios filhos. Seu amor irrestrito era inspirador. Cheh Chang sempre foi um pioneiro. E, do início dos anos 1960 até o fim dos 1980, ele, trazendo avanço atrás de avanço, renovou clichês antigos e desgastados com perspectivas modernas e novas técnicas cinematográficas. Ele inventou o wuxia yanggang e a sua série de wuxias românticos não só criou uma tendência, inaugurando, na verdade, uma “uma nova escola do movimento wuxia”. A cinética fluida de suas coreografias de artes marciais influenciaram cinemas locais e estrangeiros, dando destaque internacional ao cinema de Hong Kong. A produção local, desde então, passou a ser vista com novos olhos e com respeito. Sempre seremos gratos ao seu trabalho e ao seu legado por tudo isso.

A contribuição de Cheh Chang para o cinema de Hong Kong e para o da China é, há muito, reconhecida e sua influência, é, ainda nos dias de hoje, presente. Nós o admiramos por seu estilo cinematográfico, mas também por sua integridade, e somos gratos pelo seu legado que, agora, faz parte integrante de nossa memória e nunca deixará de nos inspirar. Cheh Chang é, por definição, um mestre de nosso tempo.


Setembro de 2002, Los Angeles





Tradução: Yuri Ramos

quarta-feira, 15 de março de 2017

Apresentação do Blog



The Forbidden Past é uma tentativa minha de organizar e divulgar certos textos e ideias. Não tanto ideias e textos meus, mas, em geral, trabalhos que eu venha a achar interessantes e que considere que ainda não têm a devida divulgação.

Penso em focar o blog somente em postagens sobre cinema e música, mas isso não exclui a possibilidade de, eventualmente, constarem algumas incursões por outras áreas afins a estas.

O nome do blog é uma homenagem ao esquecido e genial Chor Yuen, que dirigiu, na Shaw Brothers, um filme homônimo, de 1971.

Por enquanto, fico por aqui. Espero que os eventuais leitores tirem proveito desta iniciativa.