segunda-feira, 20 de novembro de 2017

O Estranho que Nós Amamos (2017)




            



           Há mais ou menos um mês pude conferir este novo filme de Sofia Coppola, “The Beguiled”, refilmagem do célebre filme de Don Siegel. Por um motivo ou por outro, adiei a confecção de um texto sobre o filme, mas agora o faço, não porque o filme, em si, tenha alguma importância (se temos sempre que escolher, entre tantos filmes, sobre os quais escreveremos, certamente este novo Beguiled não seria, por suas qualidades, das primeiras opções), mas porque, de algum modo, me surpreendeu.

            Me lembro que, à época do anúncio de que Coppola faria uma versão deste clássico, houve muitas vozes para dizer que aquilo seria uma espécie de sacrilégio, um filme abominável e um tanto iconoclasta, que tentaria substituir Clint Eastwood por algum fanfarrão hollywoodiano qualquer e o gênio de Siegel pela inépcia da diretora escolhida para a produção, que já nos últimos anos estava evidente. Ou seja: esperava-se uma espécie de aberração.

            E a surpresa veio no seguinte: se o filme está incomensuravelmente distante da sua versão da década de 1970, não se pode dizer, de fato, que seja uma abominação. É, antes, um filme completamente estéril, completamente desprovido de qualquer relevância, a verdadeira expressão em filme daquilo que nós costumamos dizer ser “uma obra passável”. E isto tanto num campo que tange mais às ideias quanto num outro, que tange mais às formas.

            Se a ideia de refilmar o clássico de Siegel pelas mãos de Coppola parecia a ideia de um projeto inútil (não tanto propriamente pela sugestão de uma revisita àquela obra, visto que já houve refilmagens de “clássicos absolutos” muito bem sucedidas – Losey para o “M” de Lang, por exemplo –, mas por esta revisita, justamente, ser perpetrada por uma diretora inapta), ela é bastante pouco perto da inutilidade real do filme: a tabula rasa que é o novo “The Beguiled” é “rasa” porque se configura como um produto de certa estética que, paulatina e perniciosamente, veio permeando o cinema de Coppola e que, agora, chega no ápice de sua expressão.

            Acontece que, pelo menos desde de “Somewhere” (talvez desde “Maria Antonieta”, mas este é um filme que não revejo há muitos anos), há uma postura em Coppola, enquanto artista, que promove certa apatia constante em suas obras. No próprio “Somewhere” esta postura e seus mecanismos ficam um pouco evidentes: o plano inicial é uma espécie de looping de manobras de um carro, que gira e gira, sempre num mesmo traçado, sem saber aonde ir e terminando sempre no mesmo ponto. É o plano de apresentação do protagonista, que metaforiza a sua própria condição diante do mundo: um ator em crise existencial que, em certo momento, vê seus rumos mudados pelo convívio com sua filha de 11 anos. Desde aí havia uma determinada preferência de Coppola por temas como a indiferença em relação ao mundo ou a ausência de compreensão do sentido da existência. Se isto permanecesse no campo das predileções de seus personagens (certas vezes, mesmo que não necessariamente, até revertidas por críticas que se verificassem ao longo das obras ou por quaisquer mudanças nas próprias perspectivas de mundo destes personagens) não haveria problemas, em si. O curioso é que isto parece redundar na própria visão de Coppola sobre suas obras, sua visão sobre o “mundo particular” que é o mundo de seus filmes: há, desde “Somewhere”, a insistência por uma distância entre a diretora e seus personagens, com suas vivências e posturas diante do mundo; uma certa de preferência por um posicionamento neutro e desprovido de julgamento, não num sentido mulliganiano de compreensão das limitações humanas, mas numa espécie de agnosticismo moral, que parece ver-se incapacitado naturalmente ao juízo ou que pelo menos não se importa em exercê-lo. Para fora do que concerne a este ato de julgar, este agnosticismo é também uma forma de negar-se propriamente a discernir as próprias motivações das ações de seus personagens, ou seja, em última instância se configura num isolamento total, onde simplesmente se relata uma série de atos humanos sem lhes inferir propriamente um juízo de valor nem lhes discernir as causas.

A partir daí, Coppola parece se fiar, em suas obras, numa estética que torna seus filmes uma mera apresentação de mundos exóticos e de ar certamente mistérico, que veem no espectador uma espécie de voyeur. Aqui, parece haver a aposta no único elemento que, proveniente deste seu mecanismo, poderia favorecer suas obras: o mistério que está por trás dos atos humanos retratados em seus filmes. Se a diretora não julga tais atos, ou pelo menos se esforça ao máximo para fugir a este julgamento, se também não discerne as causas de tais atos, resta a ela nos apresentar mundos com uma aura do desconhecido, com certa dúvida sobre tudo aquilo que acontece, sobre por que acontece, sobre a bondade ou a maldade do que acontece. E é aqui, precisamente, que encontramos o cerne do problema no cinema recente de Coppola: todo este mundo de exotismo nos é vendido (vendido ao nosso voyeurismo de espectadores) não como um conjunto de experiências e atos humanos dúbios e intrigantes por sua dubiedade, ou mesmo como um conjunto de vivências interessantes (mesmo que sem tanta dubiedade) por alguma causa recôndita, mas como uma espécie de “peça de grife” ou de “anão de circo”. Se trata, assim, da formação de um voyeurismo no qual o interesse do voyeur pelos atos humanos inexplicáveis em suas causas (e, portanto e principalmente, em suas finalidades), está, simplesmente, nesta própria inexplicabilidade. Em palavras mais concisas: o interesse do voyeur construído por Coppola é unicamente na futilidade de atos fúteis. E de atos para os quais a diretora e seu mecanismo agnóstico conferem cada vez mais futilidade.

            É interessante o exemplo de “The Bling Ring”, por ser o mais evidente de todos neste sentido: as atitudes e o espírito daquelas patricinhas parecem redundar nas formas que o objeto estético em que o filme se configura adquire: a fotografia de anúncios de perfume, que parece construir um mundo rosáceo (uma espécie de shopping center rosa schocking), os inúmeros planos de objetos de grife e da retratação de um mundo de aparências nas redes sociais computadorizadas que bombardeiam o espectador, tudo isto nos é vendido como objeto de interesse. E mesmo que Coppola venha a dar um “fim justo” aos seus ladrõezinhos no fim do filme, isto não impede que toda a obra continue sendo uma abominação da promoção desta perspectiva voyeurística em relação às atitudes humanas ali retratadas. Em Coppola, é como se estivéssemos numa espécie de reality show, onde o principal trunfo é atrair-se o espectador pelo interesse nas inutilidades da vida alheia.

            Com isto, é possível que se diga que o cinema de Coppola, se redundou formalmente nos espíritos fúteis de seus personagens, também tornou-se um cinema de filmes fúteis, algumas vezes desprezíveis esteticamente e mesmo moralmente.

            A primeira surpresa, nisto tudo, é ver que seu “cinema de inutilidades”, com o novo Beguiled, não se torna propriamente uma aberração mais chocante que a de seu filme anterior, mas um objeto ainda mais passável, mais estéril, que não suscita quaisquer desejos de reação, de indignação ou de louvor. É o cinema de um filme-nada.

            É interessante perceber a tentativa da diretora em tornar “O Estranho que Nós Amamos” um filme permeado por tensões, a partir deste ar “mistérico do mundo” sobre o qual já falamos: há vários momentos que, em elipse, produzem vácuos nas ações, a fim de lhes dar um ar de desconhecido; há também certa implantação, teoricamente intrigante, de dada naturalidade em ações teoricamente mais excepcionais (a sequência que nos apresenta o ato sexual entre a jovem sedutora e o “estranho que todas amavam”, por exemplo). A própria apresentação de cada personagem e de seus interesses pessoais dentro do filme é posta de uma certa maneira como que isolacionista, em que não há propriamente uma evidente concatenação narrativa que leve, pouco a pouco, à descoberta, pelo protagonista, dos espíritos de cada uma daquelas mulheres. Seria como se, de modo abrupto e deslocado, sem uma causa evidente, todas se apresentassem: “olhe, eu sou assim”.

            Curiosamente, todos estes mecanismos são, evidentemente, motivo de grande fracasso para o filme, que se torna um grande amontoado de ações sucessivas desprovidas da fortificação de um aporte narrativo que as pudesse emoldurar para que se potencializassem e adquirissem significado maior e peso estético mais relevante. Mais uma vez, como em seu filme anterior, alguém poderá dizer que aqui há um fechamento que impede que a obra se torne um mero objeto cuja apreciação consiste num voyeurismo afeito às atitudes fúteis: no fim de “The Beguiled”, e ao longo de sua extensão, ficam evidentes certas causas de alguns atos perpetrados por aquelas mulheres (o espírito de rancor e de inveja é bem nítido, por exemplo). Mas nenhuma afirmação neste sentido faria com que a estética pretensamente mistérica de Coppola pudesse se tornar coadjuvante, até por ser esta estética quem, por excelência, é responsável pela regência formal de sua obra. Os mecanismos já aqui apresentados são suficientes para se discernir a esterilidade e o aspecto propositalmente deslocado das ações de seus personagens.

            Disse eu, há alguns parágrafos atrás, que o fato de “O Estranho que Nós Amamos” ser um “filme-nada” era uma primeira surpresa sobre ele. Mas ainda há uma segunda, que trata do que isto representa no panorama geral da obra de sua diretora.

            É muito curioso que uma cineasta que tenha iniciado sua carreira com “As Virgens Suicidas” e “Encontros e Desencontros” tenha se tornado justamente a cineasta das ações estéreis. Justamente porque esses seus grandes filmes de estreia, mesmo que pudessem em alguma instância estar permeados pelo espírito do que seria a Coppola posterior, eram filmes que justamente conservavam pequenos atos profundamente significativos, de um peso imenso, que imprimiam uma espécie de marca indelével no coração dos espectadores. O abraço final em “Lost in Translation” e o derradeiro gesto de caridade e sedução de Kristen Dunst, quando pousa sua mão sobre o cinto do menino mais novo antes da morte coletiva das virgens suicidas, são, provavelmente, os dois gestos mais sintéticos, os arcabouços gestuais mais significativos de sentimentos não mensuráveis que o cinema viu nos últimos 20 anos. É surpresa para nós, enfim, que estes momentos de suprema beleza tenham sido substituídos, na Coppola de hoje, por ações que provocam repulsa ou (e principalmente) indiferença. E a impressão que nos fica é a de que a cineasta perdeu, talvez definitivamente, uma capacidade sublime que deve estar contida em todos os artistas: a capacidade de discernir a beleza das “coisas simples da vida”.       

            

Loucura Americana (1932), por Louis Skorecki



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Loucura Americana. Ciné Cinéfil, 19h 15.

Por Louis SKORECKI — 19 de fevereiro de 1997 às 17:21




          Em 1932, Frank Capra já é um grande cineasta. Ele contribuiu ao inventar, desde Tramp, Tramp, Tramp e Long Pants, o formidável personagem burlesco de Harry Langdon. Tão personalista quanto Buster Keaton, esse eterno bebê empoado e extravagante transforma em vítima fantasma as catástrofes de um mundo urbano no qual se sente definitivamente estrangeiro. Capra se servirá mais tarde desta silhueta de poeta extraterrestre para criar seus próprios personagens, de um estranho individualismo, ocupados em reformar, a partir do sonho e da utopia, sociedades nas quais se sentiam excluídos.

           Naquele momento, após já ter assinado algumas obras-primas quase experimentais como Flight em 1929 (as aventuras espalhafatosas de um grupo de aviadores num fabuloso som direto pré-histórico), Rain or Shine em 1930 (uma antecipação das mais furiosas aventuras dos Stooges ou dos Marx Brothers) e três melo-maravilhas de 1932, Platinum Blonde, Miracle Woman e Forbidden, ele se lança alguns meses depois em direção da aventura de American Madness. Produzido por Herry Cohn, este filme é a primeira colaboração entre o futuro autor de A Felicidade Não Se Compra e seu roteirista favorito, Robert Riskin. Com uma energia inventiva e generosa que nos recorda curiosamente outro filme de 1932, La Nuit du Carrefour (realizado nos subúrbios de Paris por Jean Renoir), Capra conta a história de um diretor de banco (Walter Huston) que está prestes a perder o emprego. Este homem, que prefere emprestar o dinheiro parado nos cofres e que ama seus pequenos funcionários, é fortemente criticado por seu “board of directors”. O começo do filme (cinco homens na impressionante sala dos cofres) e a sua primeira parte (o pânico que se instaura entre os pequenos correntistas) são de um virtuosismo de perder o fôlego. Capra conta em suas memórias que cortou o começo e o fim de cada cena para poder ir mais rápido. Em uma hora e quinze minutos, ele constrói sua obra com uma engenhosidade a qual perderá sistematicamente ao longo dos anos que se seguirão.




Tradução: Yuri Ramos

domingo, 1 de outubro de 2017

Amália: Vox Populi, por Carlos Barbosa de Carvalho




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          O texto que segue é um dos complementos literários do álbum “Cantigas numa língua antiga”, de Amália Rodrigues. Curto, mas preciso, o propósito de republicá-lo aqui está em evocar estes conceitos tão caros que se referem ao que seria, de fato, o fado e o fadista e à relação intrínseca disto tudo com o povo português. É interessante também ressaltar a contraposição, irônica mas sensata (e com a qual concordo plenamente), que o autor faz, a partir de seus conceitos, entre os greco-latinos e os anglo-saxônicos.



***


Amália: Vox Populi



No fado está todo o sofrimento. Toda vida até à morte. Porque o fado é acima de tudo o amor -  e o que é o amor senão vida-morte? A descoberta da terrível, inefável fronteira. Mors Amor escreveu Verlaine. Aqueles a quem o grande amor algum dia sorriu - não estremeceram eles? Não descobriram eles por trás do mais belo sorriso o rictus aterrador de uma caveira? Espero não estar a ser lúgubre. Antes creio que seria infantil fechar os olhos à realidade do fim terrível, inaceitável, que, para os crentes, como Amália tem que ser um princípio. Também não vou ao ponto de pensar que o fado, como a saudade, são criações, conceitos, vivências exclusivamente portuguesas que mais nenhum povo pudesse compreender e compartilhar. São universais. Mas parece que há povos, como os greco-latinos, que têm mais consciência, ou, pelo menos, mais sensibilidade ao amor, ao sofrimento, à morte. Os anglo-saxônicos, especialmente os americanos, esforçam-se por ignorar, disfarçar o amor, a morte e o sofrimento. Fazem seus enterros pela calada da noite, para que ninguém veja. (Os portugueses fazem longos, incômodos velórios, muitas vezes com hipocrisia ou morbidez). Quanto ao amor e ao sofrimento, os americanos resolvem o problema eliminando-os com drogas, divórcios, vibradores, corrida ao dinheiro, cultos esotéricos e movimentos de libertação (da mulher e, agora, do homem).

O fadista, que talvez o português por excelência, não quer “libertar-se”. Não estou a falar do falso fadista que não sente nada e não percebe nada. Estou a falar de um fadista arquétipo e estou a pensar em Amália Rodrigues. Amália, grande trágica, grande cantora, canta a vida toda, canta vida adulta - por isso não pode deixar de cantar o sofrimento, a morte, as cadeias da saudade e a condição humana e, por fim, a libertação através do canto, a poesia.

Quem se pode admirar que Amália cante Camões? Ou queriam o Camões muito bem arrumadinho nas bibliotecas das universidades para deleite estéril de professores sem coração? No essencial e dando a palavra fadista a sua maior, universal, dimensão, Camões é um fadista. Fadista não só porque Camões é o português por excelência mas também pelas raízes etimológicas da palavra “fado”: destino, tragédia. Portuguesa e Universal (como é que uma portuguesa viva, artista, pode deixar de o ser e de ser universal ao mesmo tempo?) também é Amália Rodrigues. Muito provavelmente a maior cantora do nosso tempo, e como tal reconhecida. Tudo, desde os timbres da sua voz, que nos faz estremecer, até a inteligência com que escolhe as letras e músicas e a sua inteligência interpretativa, faz de Amália uma enorme artista. A voz de Amália é hoje para milhões de pessoas, em Portugal e pelo mundo em pedaços repartida, a voz do desejo, da ternura, da alegria, gaiata e brejeira, da tristeza orgulhosa, da saudade que não se envergonha, do amor adulto que afinal é um amor louco, da lucidez. É a voz do povo. A sua melhor voz.



Carlos Barbosa de Carvalho

Vila do Conde, Julho 1977

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Sobre o Virtuosismo da Ação - Lau Kar-Leung e Jackie Chan




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                Na minha última postagem, falava eu sobre o que considero ser as linhas estruturais que nortearam as tendências do cinema de ação em Hong Kong. As duas escolas centrais, uma mais literária e prosaica, outra mais operística e poética, geravam certas linhas colaterais que, de modo indireto, acabaram formando uma espécie de terceira escola, com influência de ambas as outras duas e capitaneada por antigos diretores de ação dos estúdios Shaw.

            Esta postagem de agora é uma espécie de destrinchamento da análise dessas linhas colaterais, mas mais propriamente se trata do discernimento de onde a obra de Lau Kar-Leung influenciou uma das figuras mais conhecidas do cinema de kung fu, Jackie Chan, ou seja, se trata de verificar os pontos de contato entre as obras de ambos e estabelecer em que instância estabelecem certo parentesco.


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            Poucos percebem, mas é muito provável que, entre os filhos dos Shaw Brothers, Lau Kar-Leung seja o diretor cuja obra mais ficou impressa na cultura popular: dois dos clássicos do kung fu mais assistidos e lembrados são dele, Eight Diagram Pole Fighter e A 36ª Câmara de Shaolin, e o próprio Kill Bill, tão famoso por ser derivado em certos pontos do legado da SB, é muito mais fruto de uma derivação dos grandes clássicos deste diretor do que da herança da produtora em geral.

            Desde já, isso já seria um motivo de encontro com a mesma medida (até aumentada) de sucesso do seu pupilo, Chan. Mas aí se trataria de estabelecermos aqui todas as causas, inclusive históricas, muito difíceis de delimitar hoje, do sucesso de ambos, o que se tornaria um exercício improdutivo e impreciso. O que importa é, com essa afirmação inicial e de algum modo, perceber-se que há, pelo menos, um elemento estético bem verificável tanto em um quanto em outro que, muito provavelmente, serviu de estímulo para a grande difusão de ambas as obras. E este elemento é o que eu preferirei chamar aqui de “virtuosismo da ação”.

            Não é segredo para ninguém que Lau Kar-Leung foi, antes de cineasta propriamente, diretor de ação, principalmente nos dramas de amizade masculina e ode à cavalaria de Chang Cheh. Sobre as influências que este período gerou na sua obra posterior, já escrevi anteriormente. Então prefiro me ater agora àquilo que o ofício de diretor de ação produziu enquanto legado para esta obra que viria pela frente.

            A primeira - e mais óbvia das heranças - é o fato de que se no cinema de Cheh, por exemplo, a ação dos atores, os seus atos de combate são espécies de encarnações das suas necessidades vitais e das suas tragédias pessoais, assim como instrumentos para levar a cabo as intenções que permeiam todo este ambiente trágico e existencial, no caso de Kar-Leung o kung fu é, ele mesmo, um próprio “estilo de vida”, ou, mais propriamente, uma porta para uma nova vida, para uma nova forma de ver o mundo. Em ambos os casos, as artes marciais são um instrumento, mas exercem funções muito diversas: se no primeiro o kung fu é a via para a realização dos objetivos dos protagonistas e, muitas vezes, uma espécie de veículo para fazer com que as tragédias ou as vinganças se perpetuem, no segundo são os próprios objetivos dos protagonistas que se tornam uma espécie de instrumento primeiro para que se chegue no kung fu, ou seja, o intuito da realização de uma tarefa (uma vingança, por exemplo), em Kar-Leung, é um meio que faz com que o realizador desta tarefa aprenda as artes marciais para realizá-la. E é neste ponto que a moral da história fica evidente: agora aprendido o kung fu, ele passa a mudar a vida do seu praticante, lhe dá coragem, nova força, se torna o segundo instrumento que leva ao objetivo final da realização existencial do guerreiro.

            É muito interessante, inclusive, perceber com que mecanismos tudo isto funciona. A estrutura pode variar de caso para caso, mas geralmente se encontra assim na relação entre os protagonistas dos filmes: há o esquema de mestre e discípulo; este último recebe, sem entender muito bem, ordens das mais variadas do seu tutor, geralmente absurdas, afazeres diversos e meio domésticos que parecem mais uma espécie de escravidão do que de aprendizado do kung fu; em algum momento, o discípulo vai percebendo como estas ações simplórias do dia-a-dia, estas ações humanas corriqueiras têm a ver com as ações das artes marciais e podem contribuir muito para o tal aprendizado. Ou seja, basicamente, para Kar-Leung, conhecendo a física das coisas, acaba-se por conhecer o kung fu. E, naturalmente, o kung fu, em contrapartida, passa a nos ajudar também a ver as coisas por um melhor ângulo.

            É curioso que, neste sentido, se possa fazer outro contraponto com Chang Cheh: como em seu cinema a ação é mero instrumento de cumprimento da sina de cada personagem, o seu aprendizado ou a sua prática não são redentoras, somente o seu efeito (a morte de alguém, por exemplo) e, mesmo assim, nem sempre. E isto é uma cabal exemplificação para entender-se o cerne da sua obra, que, se por isso não se torna propriamente pessimista, se torna profundamente trágica (onde a ação serve como instrumento do cumprimento do fado) e heroica (onde a ação serve como instrumento para uma finalidade honrada). Já em Lau Kar-Leung, a própria ação (e não a sua finalidade) é, propriamente, redentora, porque, se somos praticantes dela, é porque entendemos melhor a mecânica do mundo e, se entendemos melhor o mundo, entendemos melhor, também, nossa função nele, ou seja, nossa existência.

            A partir disso tudo é plenamente possível que se perceba aí um cinema que evoca (até pela própria formação de seu autor) a arte marcial como parte integrante e inseparável da vida de alguns homens (seus personagens) que souberam ver a existência de um modo peculiar e virtuoso. Assim, neste universo, o homem que aprende o kung fu não mais o separa da sua vida ou o instrumentaliza meramente, mas o vive, como se vivesse numa espécie de “espírito do kung fu”.

            Essa unidade inseparável entre vida e arte marcial e, mais propriamente, de ações quotidianas e ações de combate é que caracterizarão a segunda herança, já menos óbvia, do ofício de diretor de ação para a obra posterior de Kar-Leung: há nela uma espécie de virtuosismo da ação, passível de verificação em quase todas as suas obras onde estes valores aqui citados são mais evidentes. Para o cineasta, a facilidade no manejo das ações de combate é diversas vezes comparável com aquela com que os mesmos combatentes realizam as suas ações quotidianas. Ou seja, para o herói de Lau Kar-Leung, lutar é como lavar pratos ou encerar a casa, até porque ele já percebeu que lavando pratos ou encerando a casa pode muito bem aprender sobre o kung fu, de modo que, para ele, o combate é perpetrado sempre com muita habilidade e destreza, mas, acima de tudo, sempre com muita tranquilidade, com um certo charme de quem “não está nem ligando” para o que seu oponente tem a oferecer. É isto que aqui chamo de virtuosismo. Não se trata de pensar nos atores das ações como arrogantes que não se comovem ou não têm nenhum medo absolutamente, mas de perceber que tratam a ação de combate com uma naturalidade ímpar, tornando-se, assim, virtuoses.  

            Muitas vezes este charme do virtuosismo é tido, neste âmbito, como uma espécie de ato de ministrar joguetes ou de, em algum momento, caçoar do adversário, que muitas vezes se atrapalha ao não conseguir adivinhar os próximos passos tão naturalmente perpetrados pelos heróis/protagonistas, o que se deve principalmente ao fato de que o virtuose, ao ser um exímio praticante da sua ação virtuosística, é também um improvisador: sempre pode criar, no caso do kung fu, um golpe inusitado ou novo ou, ainda, confundir os desavisados com uma série de ações bem encadeadas e pouco previsíveis.

            São estes joguetes e estes atos de caçoar típicos dos virtuoses de Kar-Leung que conferem ao seu cinema um outro elemento: uma espécie de tom cômico extremamente cativante para com os espectadores, que parecem sempre alegres e entusiasmados, não só pelo espetáculo da ação bem concebida (e bem filmada), mas também pela própria discrepância entre estas espetaculares artimanhas e aquelas que são perpetradas pelos inimigos daqueles que as põem em prática. Assim, o cinema de Lau Kar-Leung é um cinema de ação por excelência, onde a ação é centralíssima (não só como evento estético cuja apreciação é o ponto principal das obras, mas como modo de realização existencial), mas que também, por esta própria centralidade da ação, acaba se enveredando pela comédia. Ou seja: é cinema em que o próprio virtuosismo na ação se torna um fato cômico em sua própria excelência virtuosística.

            É natural que este elemento estético se tornasse, até mesmo pelo caráter mais vendável de um cinema de kung fu mais virtuosístico (já estabelecido internacionalmente em Bruce Lee), fator chave para a maior popularidade mundial e a maior perpetuação enquanto herança do cinema de Kar-Leung em detrimento dos demais cinemas contidos na Shaw Brothers. E é este um mesmo motivo central para a popularidade de Jackie Chan.

            É notório que Chan tenha trabalhado com Kar-Leung em sua juventude, inclusive tendo os dois contracenado juntos num filme dirigido pelo segundo. O filme é o já clássico Drunken Master, onde Jackie Chan se vê confrontado com o aprendizado mais que heterodoxo de uma espécie de kung fu que alcançava seu maior potencial quando o praticante estivesse bêbado. Era, claro, mais uma faceta dos virtuosismos de Kar-Leung e os resultados, por mais contestáveis que fossem em alguns aspectos da obra, alcançaram o sempre desejado nos demais casos: séries de cenas cômicas em que o cambalear do ébrio serve mais para ajuda-lo do que para atrapalhá-lo ao estapear os mais diversos bandidos. No fim do filme, naturalmente, Chan acaba por levar uma vida mais regrada e acaba fazendo as pazes com seu pai, com quem havia brigado, mas é claro que tudo isto só é possibilitado pela experiência vital contida no seu aprendizado singular do kung fu.

            É possível que digamos, à luz do próprio Drunken Master, que Chan aprendeu bastante a lição do velho mestre Lau, não só por meio de seu personagem no filme em questão, mas no seu próprio ofício de cineasta: não é marca registrada de seu cinema este tal virtuosismo do qual tanto falamos? E também, por este mesmo virtuosismo, não é marca do seu cinema o caráter cômico? É claro que é possível que falemos de um Chan de influência dupla, como eu mesmo falei em minha última postagem: Sammo Hung também foi seu professor no ofício da comédia, mas o caráter cômico do virtuose, este só existe estruturado tal e qual discernimos aqui em Lau Kar-Leung.

            Seria possível também objetar, para derrubar toda a argumentação aqui proposta e não só a do parentesco entre Lau e Jackie, que o próprio Kar-Leung não baseia inteiramente seu cinema neste virtuosismo cômico (onde estaria isto em Eight Diagram Pole Fighter?), mas isto seria bastante incorreto, primeiro porque tratamos aqui de um elemento central que o seu cinema evoca, mesmo que não direta ou inteiramente em todos os filmes. O certo é que, enquanto diretor de ação tornado cineasta, Lau Kar-Leung pôs o kung fu em tal situação de protagonismo em sua obra que já não era um mero títere secundário, mas fator central, elemento da análise mesma dos filmes enquanto obras de arte que se debruçam diante de determinada realidade. A partir daí, todo o resto, inclusive sobre o que digressionamos aqui, é consequência, mas consequência que nunca deixa de permear direta ou indiretamente todo o espírito de sua obra singular. Porque se todo artista acaba, enquanto autor de suas obras, por imprimir seu olhar sobre o mundo no cerne de todas elas e de suas respectivas estéticas, o olhar de Kar-Leung é, antes de tudo, o olhar do artista marcial, de uma espécie de “físico involuntário”, que aprendeu a ver o mundo por este olhar e que aprendeu, com o mesmo olhar, a viver melhor no mundo. Isto é, sem dúvidas, uma verdade incontornável.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

As Duas Escolas de Shaolin

         

          Há alguns dias fiz uma postagem no Facebook acerca de uma suposta "genealogia do cinema da Shaw Brothers". Para explicar melhor gráfico que montei, replico a postagem aqui e, logo depois, faço comentários a ela:


         "Me desculpem por insistir nesse assunto que interessa a tão pouca gente, que é o cinema de Hong Kong, mas eu estive pensando e acho que existe uma espécie de árvore genealógica da Shaw Brothers que acabou dividindo o cinema de ação chinês em duas vertentes principais: uma mais prosaica, fundada em bases mais literárias, uma mais poética, fundada em bases mais operísticas e pitorescas. Isso se deve ao fato de que os grandes divisores de águas do Wuxia (ou, pelo menos, os dois símbolos dessa divisão de águas), Cheh Chang e King Hu, acabaram fundando duas "escolas de ação" que perduram até hoje e que conservam, ou pouco ou muito, os interesses estéticos pessoais desses dois diretores.

          Perdoem pela imagem ser um pouco tosca e considerem linhas retas como influências diretas e linhas diagonais como influências indiretas.




          ERRATA - O correto seria Han-Hsiang Li ou Han Hsiang Li" 



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        Em primeiro lugar: este gráfico é, digamos, a "árvore mínima possível". Há muitos outros parentescos mais indiretos que poderiam ser citados e outras ramificações possíveis (por exemplo, tenho para mim que Stephen Chow deriva indiretamente de Chor Yuen, porém prefiro não afirmar ainda categoricamente), mas preferi me ater aos cineastas de parentesco mais evidente e, ao mesmo tempo, digamos, "comprovado historicamente", onde há documentação clara de que os "mestres" trabalharam ao lado dos "discípulos".

          Mas, então, vamos a uma explicação mais clara de como esses parentescos se deram e de como e por que mestres e discípulos tiveram contato:

            O próprio Pierre Rissient já alertou algumas vezes para um dado que hoje é um tanto ignorado (minto: é completamente ignorado) pelos analistas dos cineastas da SB: eles eram, em geral, pessoas de muita cultura e, ainda, pessoas com um entendimento formidável da própria cultura chinesa. Assim, Han-Hsiang Li sabia de cor discernir a mobiliária, a arquitetura e a moda chinesas (aliás, ele começou no cinema como ator, mas também na parte de direção de arte), delimitando em qual dinastia cada uma teria sido elaborada, além de ter uma magnífica cultura literária nos clássicos chineses e, especialmente, na ópera chinesa. Do mesmo modo, antes de ser cineasta, King Hu sempre teve um interesse especial pela ópera huangmei. Cheh Chang foi calígrafo, poeta e crítico de cinema antes de ser diretor.

         Estes dados já clareiam bastante algumas coisas, mas prossigamos: quando Han-Hsiang Li chega à SB (que aqui ainda era SB Company e não SB Studio, sendo esta última a Shaw Brothers que mais se conhece hoje), em 1956, era obviamente a pessoa mais apta a colocar em prática filmes de ópera e históricos que seriam carros-chefes desta última fase da SB Co. e da fase inicial da SB Studio. Assim, Li começou a trabalhar como diretor e, por conseguinte, a edificar a sua estética e a sua mise-en-scène, que sempre foram naturalmente embasadas neste seu arcabouço cultural predominantemente histórico e lendário. Um arcabouço, digamos, peculiar: a sua obsessão era com as histórias milenares e já consagradas, com os fantasmas, com as tragédias que, mesmo tendo acontecido na vida real, já ocorreram há tanto tempo que são espécies de lendas que transformam seus personagens em arquétipos da vida humana. Isto tudo o leva ao conhecimento técnico-histórico das dinastias, mas não o contrário. Ou seja: sua predileção pela história chinesa sempre se dá pelo intermédio do seu gosto primordial por esta eternidade, por este caráter legendário e arquetípico que promana dos fatos ocorridos ao longo das mais diversas épocas de seu país. E, é claro, mais propriamente o seu interesse não é na "prosa" dessas histórias, mas na retratação desta eternidade contida nelas, seja pela ópera huangmei em especial ou, mais generalizadamente, pela suntuosidade das tragédias milenares de reis e rainhas.

           Aqui vale uma nota: chama-se comumente pelo nome de wuxia tradicional as histórias chinesas clássicas geralmente protagonizadas por personagens femininas, quase sempre sobre o enredo de um amor trágico e impossível e muitas vezes recheadas de elementos fantásticos (fantasmas, espíritos, deuses, etc.). Todos os grandes clássicos deste gênero foram adaptados para a ópera huangmei. Daí se depreende mais um detalhe sobre Li: se o seu interesse é sobre as histórias lendárias do seu país, ele o conduz ao seu interesse operístico. É este o interesse formal dos seus filmes de ópera: a eternização das lendas por meio da cenografia de ópera chinesa. E se a nossa cenografia ocidental de teatro lírico é, por assim dizer, mais afeita às disposições da pintura que o normal do nosso teatro prosaico (e, por isso, já é, por si mesma, geradora de uma mise-en-scène menos prosaica), até para que se dê mais valor ao canto dos intérpretes que às suas ações, na cenografia do teatro lírico chinês é ainda mais evidente uma evocação de valores pitorescos. É tudo profundamente estático: o posicionamento dos atores, a repetição, a rigidez esquemática e a lentidão de gestos, a própria melodia (para além dos caracteres cênicos), bastante repetida nas frases musicais, é propriamente desprezível. O que resta é basicamente as imagens das figuras dos atores impressas no quadro formado pelo palco (no caso do cinema, formado pela tela) e o enredo das histórias que contam (cantam). Estes enredos, logicamente, servem não exatamente para produzir ações no palco, mas para ressignificar o próprio papel dos atores: o ator-cantor lírico chinês é simplesmente uma figura, uma imagem retratada no palco, mas que só ganha impacto quando sabemos o que ela significa de fato (ou seja: quando sabemos qual é a sua história). É como se, da mera imagem, do mero corpo do ator, que, em si, não significa nada além de um corpo humano comum, passássemos a compreender a sua alma quando compreendemos toda a sua história de vida. E mais: quando passamos a identificar a sua figura material com a sua alma espiritual, verificamos efetivamente a sua eternidade esteticamente perpetrada por meio desta cenografia tão peculiar e pitoresca. É preciso que se lembre aqui: se a nossa cenografia de teatro lírico, em algum ponto deriva da nossa pintura ocidental, “tridimensional desde o Renascimento”, afeita aos movimentos, às noções de perspectiva, a cenografia deste mesmo teatro no oriente deriva de uma pintura que é bidimensional há séculos (é assim até, pelo menos, o fim do século XIX), e que assim é justamente por uma grande influência religiosa e espiritual na arte do sudeste asiático, mas também por toda uma visão peculiar de mundo, todo um arcabouço cultural que se traduz esteticamente e que aqui seria infrutífero esmiuçarmos, pois seria tema de um texto à parte. Em resumo, não só o teatro chinês, mas a arte chinesa como um todo é evocativa de imagens, por assim dizer, fixas, imóveis. Portanto, tudo é muito pictórico. Ou seja: se no nosso teatro de ópera o parentesco com a pintura é verificável indiretamente, na ópera huangmei isto fica ainda mais evidente, pois toda a arte chinesa da qual ela deriva contribui para isso. E se esta arte, enraizada religiosamente, converge-se para imagens estáticas e bidimensionalizadas (análogas aos ícones religiosos do cristianismo que perderam força no ocidente, mas hoje têm sua continuidade principalmente na parte oriental da Igreja e entre os ortodoxos), converge-se também para uma conceituação muito própria de eternização por meio da imagem que é quase espiritual. Por assim dizer, penso que são mais pinturas de almas do que de corpos, mais retratos de fantasmas do que de vivos. É por isto que toda a pintura chinesa é muito mais espiritual que material e, neste sentido, também muito mais poética que prosaica. É neste sentido que delimitei a primeira ramificação da minha árvore genealógica como uma veia mais poética e que derivava da ópera chinesa e da pintura. Não seria possível dissociar essas duas influencias fulcrais.

          Quando King Hu chega à Shaw Brothers, por sua vez, também já carrega em si grande interesse pela ópera huangmei. É por isso que se alia à equipe de Li, tornando-se assistente de direção deste. De Li, ele herda muita coisa, entre as quais um apego especial às personagens femininas e uma afeição pelas histórias de espíritos. Mas também todas as bases da mise-en-scène de teatro lírico advindas dos filmes de ópera de seu tutor. Na realidade, digamos, Hu se apega desde o princípio às bases mais importantes do wuxia tradicional, sem nunca tê-las largado mesmo quando resolveu fazer o “wuxia de capa e espada”, que é aquele pelo qual é mais conhecido. De seu mestre, digamos, não carrega tanto o interesse histórico, mas principalmente esse interesse operístico, o que é curioso, porque, de fato, só fez um filme de ópera, o seu primeiro longa, The Story of Sue San. Mesmo assim, é possível dizer que foi com Hu que esta cenografia operística se perpetuou para a posteridade com mais vigor e qualidade: enquanto alguns só a utilizaram quando de fato fizeram ópera huangmei no cinema (gênero de filmes que logo caiu em desuso), Hu conseguiu transferi-la para o “novo wuxia” e ainda criar descendência.

          Esta descendência, por sua vez, é direta e indireta: Sammo Hung foi seu diretor de ação em filmes de altíssimo nível, como O Destino de Lee Khan e The Valiant Ones (este último deve conter a melhor direção de ação de todos os tempos, na sua sequência final). E, sem dúvidas, este ofício, no cinema de kung fu, sempre gerou heranças, mesmo que indiretas: o diretor de ação é sempre diretor de uma ação que retrata, nas artes marciais, todo o espírito de uma obra cinematográfica maior, comandada pelo diretor (Jonh Woo fala um pouco sobre isso no prefácio ao livro Chan Cheh: A Memoir, que eu traduzi aqui neste blog). Não há dúvidas que, deste modo, os diretores influenciem seus diretores de ação. E, nesta perspectiva, Hung herda de Hu certos aspectos de sua obra, mesmo que isto seja de difícil verificação em alguns momentos. O principal, ao meu ver, é uma certa sobriedade de um gestual esquematizado e preciso, em contraponto ao desejo de querer espetacularizar as cenas de ação (tendência de Kar-Leung, por exemplo).

          Esta mesma influência ocorre, mas mais diretamente, no seu pupilo, Tsui Hark. Para perceber isto não é preciso dissertar muito, os filmes falam por si mesmos e logo sabemos de onde vêm os fantasmas e espíritos que assombram o Detetive Dee e outros personagens. Não procurarei falar tanto sobre estas influências mais evidentes (o texto já está longo demais e prefiro me debruçar sobre o que, penso eu, as pessoas ainda não deram a devida atenção).

           Mas, em meu gráfico eu delimitei duas escolas de Kung Fu e a segunda, mais prosaica e filha da literatura, era capitaneada por Cheh Chang.

           Como já disse aqui, antes de ser cineasta, Chang se dedicou profundamente a diversas áreas de literatura. Pelo seu ofício de poeta, foi empregado na Shaw Brothers como roteirista e letrista para as canções de filmes de ópera. Daí, temos a divisão fulcral: se Li e Hu eram pintura, Chang é literatura. Ambos utilizam a ópera para chegar às suas afeições verdadeiras: uns às imagens, outro às palavras. É por isto que, também, o cinema de Li e Hu é espírito e o de Chang, carne: é dele os litros de sangue, é dele as tragédias não lendárias nem palacianas, mas heroicas e sofridas, frutos da coragem do homem (e do homem mesmo, pois a obra de Chang, ao contrário da dos outros dois, é predominantemente masculina) que se esfarrapa por sua honra e por seus valores. Seu legado é bastante claro: as suntuosas lutas de Lao Kar-Leung e o gosto deste pelo heroísmo (os heróis que morrem, literalmente, de pé em Eight Diagram Pole Fighter já morriam desta forma em Chang), mas também as tragédias mais do que físicas e viscerais de Woo e, principalmente, o seu entendimento sobre a temática da amizade masculina (temática principal da obra de Chang), que será levada aos termos máximos dentro do cinema de kung fu por meio do seu antimaniqueísmo tão característico.

         Para terminar esta análise, é preciso ainda que eu explane o porquê da última ramificação do meu gráfico. Acho que é justo dizer que todo o cinema de ação é derivado da dança, do teatro bailado, a arte cenográfica mais poética que existe, mas, ao mesmo tempo, mais material. Neste sentido, poética não é sinônimo de afeição ao espírito. No fundo, todo o cinema de kung fu (e, em especial, este, porque é mais bailado que qualquer outro cinema de ação), seja pitoresco ou literário, é, em última instância, muito mais poético que qualquer outro cinema não-experimental. E é por isso que quando falamos no cinema dirigido por diretores de ação (como Hung e Kar-Leung), tão afeitos a um cinema de confronto corporal, de exaltação da beleza da ação propriamente dita, não estamos falando, por estarmos no capo de um cinema material por excelência, falando de um cinema de menor poesia. Ao contrário, é um cinema de enorme poesia, porque é um cinema de contemplação, que não utilitariza o ato, mas que o venera na sua beleza tão somente, na beleza da ação enquanto ação, do gesto enquanto gesto (e não é isso que é a dança, não é isto que é o balé, por exemplo?). Deste cinema, cujos representantes iniciais no meu gráfico são Sammo Hung e Lao Kar-Leung, entendo que o herdeiro mais recente seja Jackie Chan, iniciado nesta arte da direção de artes marciais tanto por Hung quanto por Lao. Seu legado, apesar de inferior ao de seus tutores, carrega as marcas destes, que são tão evidentes que não são necessárias para a menção.

        Por hora, são estas as conclusões que penso serem amplamente verificáveis no contexto do cinema da Shaw Brothers. No entanto, há tantos outros cineastas (alguns ótimos), tantos discípulos e possíveis ramificações... O certo é: se o cinema chinês hoje sobrevive (e sobrevive bem) isto se deve a estas escolas que perduraram com força. E se estas escolas existem, isto se deve à oportunidade que seus autores iniciais tiveram em colocar à disposição do cinema suas bagagens culturais imensas. E esta oportunidade, esta oportunidade se chamou Shaw Brothers.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Manifesto do Novo Cancioneiro (1963)

           

             O texto que segue é uma tradução ao Manifesto del Nuevo Cancionero, texto historicamente importante para a história da música latino-americana e, mais especialmente, argentina. Se se trata de um manifesto com algum cunho político oculto (o de conter o imperialismo cultural americano), este acabou servindo, se é que de fato existiu, para os propósitos estéticos de seus idealizadores, sem nunca ocorrer o contrário (a arte não se submetia à política, mesmo que esta última, em seus propósitos, às vezes a favorecesse). Trata-se, antes, de uma tentativa de preservação de valores nacionais e da conservação, aberta a vanguardas, numa hermenêutica de continuidade, de pressupostos estéticos já bem fundamentados e característicos da música latina. Trata-se, portanto, de uma tentativa de burilar, dentro dos limites da tradição, os artifícios estabelecidos por esta mesma tradição, a fim de uma arte erguida em bases sólidas, mas não estagnada.

            Se sabemos que o arcabouço musical luso-hispânico (ou seja, ibérico) e seus descendentes (a música dos países colonizados por Espanha e Portugal) acarretaram na melhor música popular da qual temos notícia (e, sobre os motivos disso, explicarei numa outra ocasião), o Manifesto do Novo Cancioneiro foi, por assim dizer, uma tentativa de conservar e aprimorar elementos da melhor música do mundo, sem permitir que esta se tornasse nem item exótico de cartão postal, ao manter suas raízes folclóricas, nem que se deixasse degenerar pelas forças externas que se vinham impondo àquela altura (a influência americanista).       


***


Manifesto do Novo Cancioneiro



A busca de uma música nacional de conteúdo popular foi e é um dos mais caro objetivos do povo argentino. Seus artistas, desde os alvores de uma expressão popular própria, tentaram, com distinta sorte, incorporar a diversidade de gêneros e manifestações das quais dispunha sua sensibilidade, com o propósito de cantar a todo o país.

Já Carlos Gardel, no início dos modernos meios de difusão, fez incursões como autor e intérprete tanto no gênero nativo, onde começou sua relevância, como no gênero típico cidadão, que encontrou no tango sua forma mais completa de expressão. Outros gêneros, populares até então, como a valsa, a polca, etc., não se mostraram tão eficientes para traduzir o modo de ser e sentir das amplas camadas populares do país crescente.

Na busca de sua expressão, o artista popular adotou e recriou ritmos e melodias que, por seu conteúdo e sua forma, se adaptam mais inteiramente ao gosto e aos sentimentos do povo. Essa interrelação entre o artista criador e o povo destinatário de suas obras deu nascimento ao tango que, penetrado do espírito vivo das massas, seria desde então a canção popular por definição, dada a proeminência cultural, política e social que, desde então, Buenos Aires teria sobre o resto do país. A deformação geo-sociológica que este feito político provocou em todas as ordens de vida do país devia alcançar também a música nacional de inspiração popular.

Se relega ao interior o homem, a paisagem e a circunstância histórica e o país acentua sua fachada portuária, unilateral e, portanto, muitas vezes epidérmica. Porque durante muitas décadas o país foi isso: um rosto sem alma, onde até o tango, com sua palpitante crônica dolorosa (Contursi, Flores, De Caro, Los Caló, Discépolo, Manzi e tantos outros facilmente identificáveis), reclamará em suas noites insones o cerceamento do espírito nacional e a amputação feroz do país total.

É que o tango, refém de sua boa sorte, já havia caído do “anjo popular” para as mãos dos mercadores e era forte moeda de troca para a exportação turística. Foi aí que o condenaram a repetir-se em si mesmo, até estereotipar um país de cartão postal, “farolito mediante”, alheio ao sangue e ao destino de sua gente.

E, então, se perpetrou a divisão artificial e asfixiante entre cancioneiro popular cidadão e cancioneiro popular nativo de raiz folclórica. Interesses escusos alimentaram, até a hostilidade, esta divisão que se faz mais acentuada em nossos dias, levando a autores, intérpretes e público a um antagonismo estéril, criando um falso dilema e ocultando a questão principal que agora está plantada com mais força que nunca: a busca de uma música nacional de raiz popular, que expresse o país em sua totalidade humana e regional. Não por meio de um único gênero, o que seria absurdo, mas pela ocorrência conjunta de suas variadas manifestações (quanto mais formas de expressão tenha uma arte, mais rica será a sensibilidade do povo ao qual ela se dirige).

Não há, pois, para o homem argentino, um dilema entre tango e folclore, música cidadã e música regional, tipismo ou nativismo. O dilema real do homem argentino é, no plano de seus interesses, ou o desenvolvimento vital de sua própria expressão popular e nacional na diversidade de suas formas e gêneros, ou estancamentos infecundos diante da invasão das formas decadentes e descompostas dos híbridos forâneos. Há país para todo o cancioneiro. Só se falta integrar um cancioneiro para todo o país.


Uma tomada de consciência: o auge da música nativa


Nos momentos atuais, Buenos Aires e todo o país assistem a um poderoso ressurgimento da música popular nativa, motivada pela inquietude de interpretar este fenômeno. Há quem se incline a considerar este ressurgimento como uma moda, à maneira de tantas outras que eventualmente assolam a grande capital cosmopolita, porto de todos os portos.  Mas uma análise mais atenta de nossa realidade não pode senão nos afastar desta hipótese. Nós afirmamos que este ressurgimento da música popular nativa não é um feito circunstancial, mas uma tomada de consciência do povo argentino.

No que diz respeito a Buenos Aires, apontamos este fato: devido ao auge industrial que se inicia radicalmente na Segunda Guerra Mundial, a capital o aporte massivo de imensos contingentes humanos do interior do país. Eles traziam, junto à esperança de uma vida melhor na grande cidade, suas velhas guitarras e a magia de suas paisagens natais. Posteriormente, seria o mercado quem, cada vez mais, exigiria música nativa e que acabaria por impor ao homem e à mulher portenhos uma paixão inquietante por esse imenso e abissal país continente. Todo o país começou a ver-se neste cancioneiro, suspeitando que, atrás de suas costas, um mundo cativante e desconhecido havia sido posto em movimento.

O auge da música folclórica é um sinal de maturidade que o argentino conquistou a partir do conhecimento do país real. São os primeiros sintomas massivos de uma atitude cultural diferente. O país existe. O povo do interior acabou por realizar a terceira fundação de Buenos Aires, agora a partir de dentro. A consciência deste “ser no país” é irreversível e suas implicações mais profundas, das quais o cancioneiro nativo é só a forma mais visível, informarão e conformarão no futuro o seu destino histórico. Porém, este descobrimento da terra, esta valorização cultural nova que tentamos desentranhar, deve ser ampliada e aprofundada, sob pena de que se perda no tráfego de interesses criados e paralisantes. Se para muitos este fato é somente uma distração ou um modo de ir mais além de suas aptidões imediatas, o artista criador com vocação nacional e raiz popular deve burlar esta armadilha.

Que não roubem nem do artista e nem de seu povo esta tomada de consciência é o que propõe o NOVO CANCIONEIRO.


Raízes do Novo Cancioneiro


Até o advento de Buenaventura Luna e Atahualpa Yupanqui, o cancioneiro nativo se manteve numa etapa de formas estritamente tradicionalistas e recompiladoras. Se versava sobre o tema tal e qual havia sido achado: em sua versão primária com poucos e esporádicos aportes criadores que, quase sem exceção, se esforçavam por respeitar o cânon tradicional.

Deste ciúme pelas formas originárias e puras, advirão logo os vícios que querem fazer do cancioneiro popular nativo um solene cadáver.

Em seu tempo, quando o principal era a difusão da canção nativa, este estilo e este conceito teve uma inegável justificativa e este labor de tantos abnegados curadores e difusores da canção vernácula merece de nós o mais alto respeito. E então, o cancioneiro precisava de um lugar profundo e visível na sensibilidade de amplos setores do país; era natural e lógica a insistência em mostrá-lo tal e qual era ou havia sido sua origem. Mas foi a estagnação neste estágio que o degenerou em um folclorismo de cartão postal, do qual ainda sofremos as remanescências, sem vida nem vigência para o homem que construía e modificava dia a dia sua realidade. É com Buenaventura Luna, no literário, e com Atahualpa Yupanqui, no literário musical, que se inicia o impulso renovador que amplia seu conteúdo sem ferir sua raiz autóctone. A este achado, se somará logo o aporte de músicos, poetas e intérpretes das novas gerações que, clamando pelo desmonte destes entraves acerca da sensibilidade popular, protagonizaram o ressurgimento atual. Tanto Luna como Yupanqui surgem das suas regiões do país mais ricas em expressões musicais: o Norte e o Cuyo. Estes, sem ser os únicos, são os mais representativos percussores, pela qualidade e pela extensão de suas obras e por sua vocação de expressar de modo renovado a canção popular nativa, o que acaba por proporcionar a origem do NOVO CANCIONEIRO.


O que é o Novo Cancioneiro?


O NOVO CANCIONEIRO é um movimento literário-musical dentro do âmbito da música popular argentina. Não nasce por ou como oposição a nenhuma manifestação artística popular, mas como consequência do desenvolvimento estético e cultural do povo e é sua intenção defender e aprofundar este desenvolvimento. Tentara assimilar todas as formas modernas de expressão que ponderem e ampliem a música popular e é seu propósito defender a plena liberdade de expressão e de criação dos artistas argentinos. Aspira renovar, em forma e conteúdo, nossa música, para adequá-la ao ser e ao sentir do país de hoje. O NOVO CANCIONEIRO não desdenha das expressões tradicionais ou de fonte folclórica da música popular nativa, pelo contrário, se inspira nelas e cria a partir de seu conteúdo, mas não para furtar do tesouro do povo, senão para devolver a esse patrimônio o tributo criador das novas gerações.


A que se propõe o Novo Cancioneiro?


O NOVO CANCIONEIRO se propõe a buscar a riqueza criadora dos autores e intérpretes argentinos, à integração da música popular na diversidade das expressões regionais do país.

Quer aplicar a consciência nacional do povo, mediante novas e melhores obras que a expressem. Busca e promove a participação da música típica popular e popular nativa nas demais artes populares: o cinema, a dança, o teatro, etc., em uma mesma inquietude criadora que contenha o povo, sua circunstância histórica e sua paisagem. Neste sentido, adere à inquietude do Nuevo Cine, como também a toda tentativa de renovação que tente testemunhar e expressar pela arte nossa apaixonante realidade, sem concessões nem deformações.

Rechaça todo regionalismo fechado e busca expressar o país todo na ampla gama de suas formas musicais. Se propõe a depurar dos convencionalismos e tabus tradicionalistas à exaustão, o patrimônio musical tanto de origem folclórica quanto de origem popular.

Alentará a necessidade de criar permanentemente formas e procedimentos interpretativos, assim como obras de genuína identidade com o país de hoje que enriqueçam a sensibilidade e a cultura de nosso povo.

Desfará, rechaçará e denunciará ao publico, mediante análise esclarecedora em cada caso, toda produção grosseira e subalterna que, com finalidade mercantil, tente depreciar tanto a inteligência quanto a moral de nosso povo.

O NOVO CANCIONEIRO acolhe em seus princípios a todos os artistas identificados com seus desejos de valorizar, aprofundar, criar e desenvolver a arte popular e neste sentido buscará a comunicação, o diálogo e o intercâmbio com todos os artistas e movimentos similares do resto da América.

Apoiará e estimulará o espírito crítico, a partir de círculos artísticos e organizações culturais destinadas ao nosso acervo, para que o “culto pelo nosso” deixe de ser uma mera distração e se canalize em uma compreensão séria e respeitosa de nosso passado e de nosso presente, mediante o estudo e o diálogo formativo de nossas juventudes.

O NOVO CANCIONEIRO lutará para converter a presente adesão do povo argentino ao seu canto nacional em um valor cultural inalienável.

Afirma que a arte, como a vida, deve estar em permanente transformação e por isso busca integrar o cancioneiro popular ao desenvolvimento criador do povo todo para acompanha-lo em seu destino, expressando seus sonhos, suas alegrias, suas lutas e suas esperanças.



TITO FRANCIA – OSCAR MATUS – ARMANDO TEJADA GOMEZ – MERCEDES SOSA – VICTOR GABRIEL NIETO – MARTIN OCHOA – DAVID CABALLERO – HORACIO TUSOLI – PERLA BARTA – CHANGO LEAL – GRACIELA LUCERO – CLEDE VILLEGAS – EMILIO CROSETTI – ADUARDO ARAGÓN.




Tradução: Yuri Ramos


sexta-feira, 21 de julho de 2017

Alguns Toureiros - 3 ou 4 M's




        MANOLETE



Alguns Toureiros


A Antônio Houaiss


Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.

(João Cabral de Melo Neto)



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MANET



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MAMOULIAN